Brincar é das actividades mais sérias desenvolvidas pelas crianças, de tal forma que na Declaração Universal dos Direitos da Criança, o brincar é o VII direito, tão fundamental como o direito à saúde, à educação ou à segurança. É um motor do desenvolvimento da criança, nos seus aspectos físico, sensorial, cognitivo, criativo, e sobretudo emocional.
Numa sociedade que valoriza tanto o desempenhar de tarefas com eficácia e sucesso, o brincar é demasiadas vezes considerado como uma perda de tempo ou como um desperdício. Isto é um erro sério.
Brincar é uma actividade universal, em todas as idades, em todos os tempos, em todas as culturas e em todas as circunstâncias da vida.
Brincar surge por imitação, nos primeiros meses de vida centrado na mãe e vai-se alargando progressivamente à família e ao mundo. Faz-se sem intenção de produzir algo predeterminado, mas sempre como uma postura activa, concentrada e empenhada, com o objectivo de entreter e dar prazer.
Mais crescidas, as crianças vão imitando os pais, nas suas actividades do dia-a-dia. Mais tarde imitam os adultos nas suas profissões, num constante jogo de “faz de conta” que as acompanhará durante anos. Este é cada vez mais elaborado, com o objectivo de conhecer e perceber o mundo dos “grandes”. Depois irão encenar os seus heróis e as suas fantasias.
Na infância os sentimentos são intensos, mas a capacidade de lidar com eles e de os exprimir ainda é frágil. As crianças têm muita dificuldade em verbalizar o que sentem, mesmo depois de adquirir a linguagem. Brincar dá à criança a primeira oportunidade para se exprimir de forma simbólica e é uma base essencial do seu pensamento. Durante todas estas actividades exprimem as suas emoções, como as tristezas, as raivas, os medos, as angústias. É pelas suas brincadeiras que dão oportunidade aos adultos de as compreenderem e de terem acesso ao seu mundo interior. De tal maneira, que o brincar é um instrumento essencial para quem trabalha em pedopsiquiatria ou psicologia infantil.
Rapidamente as crianças começam a socializar, a conviver com os outros, a aprender regras do jogo e da própria sociedade. É necessário confiar nos companheiros, quando jogamos em grupo, aprender a ganhar e a perder, aprender a gerir as euforias e as frustrações.
Pouco a pouco, com este compromisso entre os sonhos e a realidade, vão aprendendo os limites da vida, a gestão de conflitos, a negociação com os outros. Passam a entender a persistência no esforço, a partilha, o respeito e a amizade. Valores que serão essenciais para a vida.
Brincar vai muito para além do brinquedo. Importa mais a história que se conta ou o jogo que se inventa, do que o brinquedo que se usa. Quase tudo serve para brincar, dos utensílios domésticos aos objectos naturais.
No século XXI, no ocidente, as crianças vão tendo menos tempo, menos irmãos, menos disponibilidade dos pais e menos oportunidade para brincar livremente.
Com a mudança demasiado rápida da sociedade, o espaço ficou reduzido e inseguro. Muitas crianças já não brincam na rua, nem fazem a pé o caminho para escola, que tantas vezes era uma escola para a autonomia…
Hoje muitas crianças tem o dia a dia demasiado regrado entre a escola, as salas de estudo e outras actividades. O excesso de programação rouba um tempo essencial para a brincadeira. Não deve assustar os pais que as crianças tenham tempo livre, antes pelo contrário!
As novas tecnologias modificaram os nossos hábitos diários, entraram nas nossas casas e escolas demasiado depressa. É claro que trazem vantagens, mas não houve o tempo necessário de adaptação e de aprendizagem da regulação por parte dos adultos e da auto-regulação das crianças.
O substituir o brincar livre por ver televisão ou utilizar tecnologias virtuais, leva a criança a depender, cada vez mais, das fantasias “pré-fabricadas” dos programas e a desenvolver uma atitude passiva.
Brincar também ensina a estar sozinho, com brinquedos ou nos seus pensamentos. Vai-se construindo um mundo interior rico que lhe permitirá entreter-se e sobretudo auto satisfazer-se pela vida fora, de forma autónoma, sem depender dos outros ou de fantasias fornecidas pela tecnologia.
As crianças são sensíveis aos sentimentos íntimos dos adultos. Nesse sentido, os pais devem fazer sentir aos filhos como apreciam que eles brinquem. A participação dos pais nas brincadeiras cria importantes momentos partilhados de prazer que ficarão para o futuro.
Em síntese: brincar dá-nos ferramentas de aprendizagem, de autonomia, de liberdade e de satisfação, que nos permitem uma vida em sociedade mais equilibrada, mais feliz e mais humana. Tal é válido para a infância, mas também para a vida adulta.
O Homem torna-se mais humano e melhor quando brincou e brinca!
Não esqueçamos as crianças que fomos...
Inês Torrado, Pediatra
Texto elaborado para o Portal C&F, SPP 2018.01.26©